Conto A Tipografia
A Tipografia
No dia 10 de Março, durante o Jantar Comemorativo do 86º Aniversário do PCP, foi efectuada a apresentação do conto "A Tipografia" do camarada Manuel Gregório, editado pela Comissão de Concelhia de Leiria.
Neste conto o camarada relata a história de uma tipografia clandestina do PCP que funcionou na Freguesia de Marrazes, Concelho de Leiria.
A TIPOGRAFIA
Na estrada que liga a povoação de Marrazes à estrada da estação ( para Sul ), e aos lugares de Pinheiros e Milagres ( para nascente ), destaca-se um troço compreendido entre a Fonte do Olhinho e a Palmeira, que se chamava Ladeira do Ceia. Hoje, é a Rua da Senhora do Amparo.
Ao Sítio, chamava a população de Marrazes, os Carvalhos do Portela. Era uma ribanceira de declive muito acentuado, quase a pique, infestada de uma vegetação rasteira, de silvas, fetos e loureiros, onde sobressaíam dois soberbos carvalhos, lá no cimo, e uma boa meia dúzia de medronheiros raquíticos, abafados pela vegetação.
Neste emaranhado vegetal notava-se, em diagonal, um carreiro que dava acesso a um pátio e cómodos, nas traseiras da casa do senhor Luís Gaspar Portela Júnior – o Professor Portela. A ele, e a vários outros membros de tantas outras gerações desta abastada família, professores do ensino primário, se deve o actual topónimo “Rua dos Professores Portelas”. Ao tempo, chamava-se “O Jogo”, por ali se jogar a tudo, até futebol, com bolas de trapos.
Ainda lá está, a Casa. Hoje propriedade de um conhecido comerciante da praça de Leiria, mantém-se, com pequenas alterações, como era: uma vivenda grande, de família rica, de construção dos finais do século XIX.
Aí por volta de 1944, a casa foi arrendada, pelo senhor Afonso Portela, irmão e herdeiro de Luís Portela, a “uma senhora Fátima”, viúva, remediada (teria uma reforma do marido, combatente na Grande Guerra), com um filho doente dos nervos, que precisava de uma casa sossegada na aldeia. “Tem crises terríveis, e nessas ocasiões precisa de total isolamento e silêncio absoluto, e esta, se não for muito cara, vinha mesmo a calhar.”
Feitos os ajustes, procederam à mudança. Pouca coisa. Duas camas, um ou outro móvel, duas ou três cadeiras, duas malas de roupa, uma cómoda, dois grandes caixotes com “a roupa de cama” e duas mesas desengonçadas.
- Por agora trazemos apenas o indispensável, o resto vem vindo depois, pouco a pouco. Até porque o médico diz que podemos ter que nos mudar, conforme as melhoras dele… Vai estar em observação pelo médico, amigo da família, e conforme a doença evoluir...
- Com certeza! A casa é vossa, estejam à vontade.
Estavam, por ora, instalados os novos inquilinos: Maria Machado e José Martins, funcionários do Partido Comunista Português.
Porque não ficava bem à senhora carregar os cântaros de água à cabeça, nem ir ao mercado e deixar o filho doente em casa, houve que contratar uma mulher a dias, que abastecesse de água os novos moradores da Casa e acorresse a outros pequenos serviços de fora.
Foi assim, e por indicação da esposa do senhorio, a quem fazia o serviço lá de casa, que contrataram a Ilda do Seco. Uma simpatia. De assiduidade e pontualidade quase obsessivas. De preocupação e cuidados permanentes:
- Esteve cá ontem, o senhor doutor… o filho da senhora está melhor?
- Olhe, Ilda, nem por isso. Levou a noite num sobressalto e agora está a descansar. Mas vai ficar bom, se Deus quiser!
- Deus há-de querer…Deus queira que sim !...
As coisas tinham entrado na rotina, o AVANTE! feito e posto na rua, regularmente, de quinze em quinze dias e pelo meio ainda se arranjava tempo para imprimir material para a «Agitação e Propaganda».
Não era fácil a tarefa e mais difícil ainda para a camarada. O trabalho da Tipografia e a sua parte na tarefa da vigilância não eram as únicas preocupações. A “senhora Fátima” tinha que apresentar-se como dona de casa exemplar, mãe extremosa e corresponder à conversa e simpatia dos senhorios. A própria Ilda, um certo dia, teve uma ideia genial:
- Está aqui esta coelheira, ainda do tempo do senhor Luís, vou-lhe dar um arranjo e depois dou à senhora um casalinho de coelhos, para a senhora criar, que tenho lá uma ninhada de onze, lindos, lindos, que só visto.
- A Ilda não se preocupe, tem mais em que pensar. Guarde os coelhinhos para si, muito obrigada
- Ora essa, preocupo-me pois!
E não houve maneira de lhe dar a volta…
No dia seguinte, lá estava, logo de manhã, “a impecável Ilda”, com os animais. Aos camaradas não restou outra opção que não fosse agradecer, e instalá-los, acrescentando ao rol das suas preocupações e tarefas, aquela, de criadores de coelhos. Participavam, assim, na campanha “Cria Coelhos”, lançada pelo governo fascista, nos últimos anos da II Guerra Mundial. Há males que vêm por bem, como iremos constatar…
Em algumas semanas, de dois coelhitos, a colónia passou a uma dezena de roedores esfomeados que comiam sem se fartar, crescendo a olhos vistos. E cresceram, até ficarem em condições de ir para o tacho, lugar que, embora com pena dos camaradas, lhes estava reservado desde o início.
Entretanto, em virtude da reorganização que se vinha processando no Partido, nos anos 40, e das grandes lutas dos assalariados agrícolas do Alentejo e do Ribatejo, o trabalho de organização e informação, de divulgação, de agitação e propaganda, crescia todos os dias. A tiragem do AVANTE! aumentava. Cada visita do “médico” representava uma avalanche de manuscritos, urgentes de imprimir, “para hoje”.
Foi assim que o camarada “tipógrafo”, devido à sobrecarga de trabalho, alimentação mal cuidada e insuficiente, falta de repouso e tensão permanente, começou a ficar em baixo, a ver pides e bufos em tudo o que era gente, e informava o Partido das suas suspeitas (como sendo certezas). Os camaradas tentavam, e iam conseguindo segurá-lo, até houvessem indícios seguros que a Casa estava a ser vigiada.
Uma semana dessas, em vários dias, apareceu por ali, a circular, um automóvel. Para baixo, para cima, para cima, para baixo, em lenta marcha. Por ser coisa rara isso levou a concluir que o assalto estaria eminente, mas, afinal, tratava-se apenas de um apaixonado da rica filha única do senhorio.
Ainda assim, o camarada foi gizando um plano para evacuar a tipografia.“Antes que seja tarde de mais”.
Nas poucas saídas que fazia (ao barbeiro ou à loja), ia observando as pessoas, que catalogava: “sérios”, “inofensivos”, “bufos”. Topou algumas vezes um sujeito “tipo classe média” que sempre trazia um livro ou um jornal, ou as duas coisas. Decidiu meter conversa para tentar saber que tipo de leituras o homem fazia. O jornal era o República e, de livros, lia de tudo mas gostava de ler autores brasileiros. “Nada mau, tenho homem”.
Se, de emergência, a Casa tivesse de ser evacuada, sem tempo de recorrer à organização do partido, tinha encontrado ali um possível apoio.
Na noite daquele dia ficara impresso e embalado todo o material, pronto para ser entregue à distribuição. Na reunião a três, que sempre acontecia quando o “médico” visitava a Casa, decidiu-se avançar com a evacuação, antes que fosse, efectivamente, tarde. Acertaram-se datas, horas, locais, apoios... E o plano pôs-se em marcha.
O camarada da distribuição carregou tudo o que poderia levar na bicicleta e sumiu-se a cumprir a sua parte na operação, que consistia, fundamentalmente, em informar a Direcção do Partido, pôr os materiais a salvo e providenciar transporte para a noite do dia seguinte. Os camaradas residentes procederiam à desmontagem do prelo, recolha do tipo, da tinta, do papel, de todos os pertences da tipografia, que ocultaram fora da habitação, na perspectiva de salvaguardar e defender os materiais caso, entretanto, fossem surpreendidos pela PIDE.
Tarefa difícil. A “impecável Ilda” não deixaria de aparecer, como apareceu, a entregar o matinal cântaro de água, a saber dos coelhos (um viria mesmo a ser servido nas refeições desse dia) e “do filho da senhora”.
Ao princípio da noite, o camarada dirigiu-se a casa de J. Bernardes, o tal do República e dos autores brasileiros.
Certificou-se que não havia intrusos, galgou rápido a meia dúzia de degraus que, da berma da estrada, levavam ao alpendre da moradia, bateu à porta. Vieram abrir. Perguntou pelo dono da casa.
- Está sim, faz favor de entrar.
- Não vale a pena, obrigado, era só uma pergunta... podia ser aqui.
Queria estar na rua, para se safar, caso estivesse enganado. Estava nervosíssimo e começava a vacilar, quando o “classe média” veio atender, encarou--o, espantado de admiração, e perguntou, de supetão:
- Queria falar comigo?...
- Era...
- Então diga lá.
O camarada chegou-se ao murete do alpendre, a confirmar que não havia mais ninguém por perto e fez o mesmo em relação à porta, que se mantinha aberta.
- Diga lá, homem! Ninguém nos ouve.
- Sabe – murmurou - eu moro ali, com a minha mãe, na casa do Portela, e...
- Eu sei. E depois?
A boca seca, a voz entaramelada, “ se me enganei com este gajo…”, mas já era tarde. Decidiu-se:
- É que estamos numa grande enrascada e pensamos que o senhor nos pode ajudar... não conhecemos aqui mais ninguém.
- Se puder... mas porquê eu?
- Nós somos... políticos.
- E o que é que eu tenho a ver com isso? É lá com vocês, não quero saber da vossa vida para nada.
- Está no seu direito. A partir deste momento ficamos nas suas mãos.
- Não tenho nada a ver com isso, já lhe disse, a vida é de cada um.
- Eu e a minha camarada, não é nada minha mãe, estamos numa casa ilegal, de apoio a uma organização política.
- Dos... comunistas!...
- É… do PCP.
- Gaita, homem, como é que veio logo aqui, bater à minha porta?
- Pelo faro... cheirou-me.
- Faro apurado, o seu, c'um raio! Eu nem estou muito contra vocês - defendia-se - mas qual era a ajuda que me pediam?...
- Para já e antes de mais, o seu silêncio. Era já uma boa ajuda.
- Essa garanto, sem esforço. Vamos lá, eu até simpatizo convosco, mas é melhor deixar a conversa por aqui.
- Encontrávamo-nos lá em casa, para conversar melhor, às dez horas, pode ser? Vá por aquele carreiro do declive, nos Carvalhos.
- Calma aí, eu não disse...
-...Espero-o no pátio. Se a luz estiver acesa não avance.
Apertaram as mãos. Afastou-se, confiante, deixando-o imóvel e sem palavras. Nem queria acreditar, tinha acertado em cheio.
Dez horas em ponto, “a luz está apagada, vou avançar... e se for uma armadilha?... Se fosse já tinha havido merda”. Sem se dar conta já subia o carreiro. Parou para tomar fôlego e coragem, e ouviu:
- Está tudo bem amigo, pode avançar. Fez o resto da subida. Quando se apercebeu que se encontrava em terreno direito parou para se orientar e ouviu uma voz grave e moderada, já sua conhecida:
- Escute, amigo, não sei, nem preciso de saber, qual seja a sua opção política, se é ou deixa de ser deste ou daquele partido, está a ouvir-me?
- Estou a ouvir... Eu, pois, quer dizer...
- Não quer dizer nada, não tem que dizer sim ou não. E enquanto estivermos juntos nunca pronuncie o seu, ou qualquer outro nome, nem pergunte ou queira saber os nossos, é uma questão de segurança. E posto isto quero dizer-lhe, com lealdade, que nesta casa funcionou, desde há vários meses, uma tipografia clandestina...
-...Do AVANTE! !
- Pois.
- Conta comigo, camarada.
- Pensamos que a polícia a localizou, ou está em vias disso e é preciso evacuá-la, rápido e sem sofrer baixas, pôr todo o material em segurança. Não há tempo para accionar a organização partidária. Estás consciente dos riscos que corres? És livre para a aceitar ou recusar a colaboração que o Partido te pede. Mais (e essa é a orientação), se recusares nunca ninguém te pedirá contas, entendemos que o farás em defesa da possível organização local, de ti próprio ou do teu agregado familiar. Mas tens de decidir agora: ou aceitas a tarefa, entras naquela porta e começamos já a trabalhar, ou recusas e contamos com o teu silêncio, em toda e qualquer circunstância. Tu contarás com o nosso.
- Já decidi, aceito.
- Vamos entrar.
A habitação estava uma balbúrdia, menos a cozinha, que na manhã seguinte a Ilda iria aparecer. Não havia meio de a fazer parar e ela não podia ver a casa da sua senhora em tamanha barafunda porque iria ser extremamente difícil explicar-lhe o porquê de tudo aquilo.
Entraram. A camarada esperava-os. Numa reunião rápida avaliaram a situação, acertaram um conjunto de medidas conspirativas a ter em conta daí para a frente, e elaboraram uma listagem de ajudas e tarefas necessárias para o êxito da operação: algum dinheiro para o caso de se alterar o plano estabelecido; uma pessoa para, no dia seguinte, encaixotar toda o conteúdo da Casa; uma ou duas pessoas para carregar a mercadoria para o camião que o camarada da distribuição haveria de encontrar; um camarada com uma bicicleta ou um automóvel (seria o ideal para fazer vigilância); e, finalmente, acertar a senha e contra-senha, horas e locais de encontro.
O “apoio” deixou a moradia e tratou de se pôr em acção, no cumprimento da tarefa que assumira, de falar com as pessoas para as tarefas do dia seguinte. Começou pelo contacto mais fácil e mais seguro, o camarada Gregório: “este não falha”. Era bombeiro, ex-operário da construção civil, e estava de piquete no quartel. Foi aí que o procurou. Posto ao corrente da situação, aceitou, sem reservas e com entusiasmo, participar em tudo o que fosse preciso. Quanto a outros camaradas começou por concordar que fosse o Cortês Pinto:
- Fixe é, de certeza, e é o único carro que temos. Para o outro dia todo, só vejo o meu rapaz. Com a mãe e o patrão, por causa de perder o dia de trabalho, entendo-me eu.
- Concordo. Era a minha ideia inicial, mas tratando-se do teu filho, não estava muito à vontade...
- Mas com ele falas tu, de camarada para camarada, sem paternalismos.
Fernando Cortês Pinto, comerciante, accionista e gerente da Companhia Leiriense de Moagem aceitou fazer a vigilância com o seu Dodge e fez questão de contribuir, sozinho, com a importância em dinheiro julgada minimamente decente para o evento
- Eu posso, melhor que qualquer um de vocês. E não se fala mais nisso.
E, finalmente entra o autor deste relato. O camarada, com muitos receios e cautelas, deu-me conta do que se passava e que eu tinha de dar um jeito e ir, logo de manhã, muito cedo, sem ninguém se aperceber, para a “Casa do Portela”. O meu pai, que era afinal o camarada Gregório, falaria com o meu patrão, a dar a desculpa para a falta ao trabalho.
Fiquei nos ares, ansioso, e já nem dormi bem o resto da noite. Era a minha primeira grande tarefa do Partido. Participar, e ver como era isso de fazer um jornal clandestino, com a polícia aos calcanhares. À hora combinada lá estava eu a “escalar” a vintena de metros do famoso declive.
Chegado ao pátio da Casa vi que me aguardava uma senhora, não muito jovem, ainda bonita, que vestia com alguma displicência (Pudera! Aquilo não era o átrio do Dona Maria Pia, em dia de espectáculo de gala). Contemplava-me, de olhos muito abertos, de surpresa. Não esperava um rapazinho, metido em coisas de adultos. Sem me dar tempo para, ao menos, respirar, com voz terna, tranquila, a dar confiança, a ajudar a superar aquele nervosismo que me deixava incapaz de pensar, pronunciou algumas palavras. Levei tempo a perceber tratar-se da senha, e demorei a responder a contra-senha.
Pegou-me na mão e encaminhámo-nos para a porta.
Esperava-nos o outro ocupante da Casa, bem mais sisudo e nervoso que a camarada. Sem mais apresentações, achou por bem fazer algumas recomendações e começou nestes termos:
- Bom, camarada, tu és ainda muito jovem, mas estamos nesta juntos e é bom que cada um de nós assuma, em consciência, as suas responsabilidades…
Estava eminente um longo e chato discurso, que a camarada interrompeu:
- Olha, amiguinho, tu és muito jovem… uma beleza de jovem, como há longos meses não tenho o privilégio de ter diante dos meus olhos.
Devo ter corado para ela acrescentar, a sorrir:
- Vá, não te enerves, fica à vontade, olha que estas próximas vinte e quatro horas vão ser importantes para nós, e para o nosso partido.
- Estamos mas é a perder tempo com pieguices - reclamou o camarada.
- Só mais uma coisa: não queremos que nos digas o teu nome, quem és, de onde vens e também não diremos nada de nós… Percebes.
Claro que tinha percebido. Perguntou se eu já tinha tomado o café. Disse que sim.
- Ainda bem, nós também já comemos qualquer coisa e assim ficamos daqui despachados.
Era evidente que não tinham comido ou bebido nada desde há muitas horas atrás, e contra isso eu pouco podia fazer.
Começámos a trabalhar. Demorei a entrar no ritmo deles. Não sabia o que fazer, não conhecia os cantos à casa, mas lá fui entrando no esquema e até à hora de tratar do almoço estava tudo praticamente arrumado e com guias de marcha, menos a cozinha que tinha que se guardar para a noite não fosse a “impecável Ilda” lembrar-se de alguma das suas gentilezas.
- Se não souber das coisas não pode falar delas. O melhor é não mexer em nada disto antes da noite.
- Agora os camaradas ficam aqui muito sossegadinhos, prestam atenção à rua e eu vou tratar do nosso almoço.
Ofereci-me para ajudar.
- Ficas onde estás. O camarada quer falar contigo. Eu trato disto.
Acedi. Não tinha alternativa. Ela foi-se ao último coelho, que em poucos minutos estava no alguidar, em “vinha d’alhos”. Deixou a carne a tomar gosto, enquanto reunia e preparava os ingredientes para o cozinhado: uma cebola, duas ou três batatitas, uma pinga de azeite no fundo de uma garrafa sebenta, um pedaço de toucinho rançoso, e pouco mais, ou mesmo nada mais. Acendeu o fogareiro de petróleo e procedeu à confecção do petisco.
Os géneros de primeira necessidade eram, ao tempo, racionados e adquiridos por meio de senhas de racionamento fornecidas pelo Grémio, ou comprados no mercado negro, vulgo candonga. Para clandestinos, senhas nem pensar, e candonga… era complicado.
- Vou pôr-te ao corrente do programa para hoje. Sabes que tínhamos aqui uma tipografia, que temos que defender a todo o custo.
- Sim, sei.
- Então escuta: o prelo, a tinta, o papel e tudo o que diz respeito à composição, impressão, mais o nosso Arquivo estão fora de casa, por segurança, acondicionados em três volumes, e não seguem esta noite connosco. Vão ficar à tua responsabilidade.
- Mas… eu? Porquê?
- Espera, já dizes o que tiveres a dizer, mas é evidente que não temos muitas soluções. O transporte que esperamos pode, a qualquer momento, vir a ser interceptado pela PIDE, pela GNR, pela bufaria da Legião, pela PSP, ou mesmo pela polícia de trânsito e, se o for, é melhor que fiquem com a ideia que tomaram uma simples casa ilegal, e não uma tipografia. Esse material e, principalmente, o Arquivo, que é o mais completo que temos, poderão vir a ser recuperados. Ficam à tua responsabilidade, e só os entregas a quem se apresentar credenciado. Disse. É a tua vez. Tens a palavra.
De pouco me serviu ter a palavra, se não via como usá-la, mas lá me decidi.
- Mas porquê eu? Há outros camaradas mais velhos e mais capazes para isso.
- Por uma questão de segurança e defesa do património do Partido. Porque se isto cair nas mãos da polícia, hão-de vir por aí a farejar à procura da organização. É possível que façam prisões, e, pensamos (eu e a camarada), falta a tua opinião, que se não fizeres asneiras, não será de ti que vão desconfiar. Com a tua idade ainda não terás tido tempo, e se calhar, nem oportunidade de dar nas vistas, e ficar na mira da bufaria.
- Está bem, compreendi o esquema, acho que não temos muito por onde escolher. Aceito a responsabilidade da tarefa e o compromisso de cumpri-la. Prometo que hei-de ser capaz.
A camarada, que se mantivera calada durante toda a conversa, ia e vinha, a vigiar o tacho e a rua. Aproximou-se, afagou-me os cabelos:
- És uma beleza de jovem, e valente. Se me tivesse sido dado o privilégio de ter tido um filho, gostaria que fosse como tu. Claro que vais cumprir a tarefa, e todo o Partido ficará orgulhoso de ti.
- Lamechices, não - atalhou o duro tipógrafo.
- E ciumeiras também não, por desnecessárias e fora de tempo.
Foi ver do almoço. Pouco depois avisou que íamos comer. Retirou metade do cozinhado, que guardou para o jantar, e a outra metade, três pedaços do láparo, umas rodelas de batata a nadar em caldo insípido e incolor e um quarto de pão, tudo dividido por três porções que comemos à vez, para não descurar a vigilância.
Acabada a refeição, a fome era a mesma e, arrumada a cozinha, por ali nos entretivemos até à noite. Libertos da Ilda, procedeu-se à embalagem dos haveres. Pouca coisa: um caixote com loiça, talheres, tachos e o fogareiro, e outro, grande, com roupa das camas e duas malas com algum vestuário e objectos de uso pessoal.
Logo que ficou noite cerrada, carregou-se a “mobília” e ficámos alerta, esperando, por, nem eu sabia o quê (já então fora de casa e em condições de dar o salto se fosse caso disso).
Até que, em baixo, na estrada, uma camioneta, que descia com o motor desligado, parou. Pouco depois, o batimento de ferros e o trabalhar de uma ventoinha…
- É o nosso transporte, mesmo em cima da hora, e a comunicar que está tudo a correr bem, que podemos avançar.
Deslizámos pelo carreiro até junto do veículo. Era uma camioneta Diamond, a gasogénio, e o motorista não parava de accionar a ventoinha, para manter o carvão incandescente, a todo o gás.
Trocaram-se algumas palavras, para mim sem sentido, cumprimentámo-nos e o camarada do transporte avisou, sem mais demoras:
- Vamos a isto que só tenho meia hora para estar parado.
Os camaradas “carregadores”, Gregório e Bernardes, logo apareceram e começou o corrupio, carreiro abaixo, carreiro acima. A mercadoria ia ficando arrumada no fundo da carroçaria da camioneta, quando passou pelo local um automóvel, vindo do lado da cidade. Acaçapámo-nos como e o melhor que pudemos e o motorista pôs-se às voltas com o gasogénio, simulando que abastecia o aparelho de carvão, mas o carro era apenas o Dodge da vigilância, a avisar que vinha gente.
- Ó patrão, essa gaita não anda? É preciso um empurrão pela estrada a baixo?
Era rapaziada dali que regressava do Serão para Trabalhadores da FNAT, e do Agostinho, da Emissora Salazar.
- Não, obrigado. Isto anda mas é preciso meter carvão, e leva o seu tempo a formar gás. Não é preciso nada, obrigadinho e boa noite.
- Veja lá…
Um mais atrevido fazia tenção de ver de perto o que se passava. Ia-se chegando. O camarada não apreciou o gesto e não estava para graças.
- Porra, pá! Já lhe disse que não era preciso, e agradeci a boa vontade. Vão andando, boa noite.
Quando o Dodge voltou a passar, a dizer que estava tudo calmo, o pessoal acelerou, que a tal meia hora estava a esgotar-se. Tudo carregado, os dois camaradas da Casa subiram para a camioneta. Ele para cima da carrada e ela para a cabina. Se houvesse azar, podia ser que um se safasse. Ela passaria por ser a mulher do motorista.
Nisto aconteceu uma bela surpresa. Os camaradas Gregório e o motorista, Augusto Marques, natural de Marrazes e há muitos anos a viver e a trabalhar em Tomar, encararam-se e reconheceram-se.
- Numa enrascada destas só podias ser tu - disse o Augusto.
- E tu, que me vens aqui parar a uma hora destas, que nem dá para beber um copo.
- Pois olha que nunca me enganaste.
- Nem tu a mim…
Não puderam evitar o abraço. (Já o camarada, acomodado entre “os salvados” se agastava.)
- Põe esta merda a andar, ou vamos ficar aqui o resto da noite!
Ainda deu mais umas voltas de manivela da ventoinha e, quando o carvão ficou no ponto, instalou-se, pôs o velho camião em marcha e desapareceu ladeira abaixo para destino que só ele conhecia.
Nós aguardámos escondidos na vegetação, durante uma boa dezena de minutos (pareceram horas), que o benquisto Dodge, que deveria escoltar a camioneta até fora da zona de perigo, nos viesse dar o sinal combinado.
Aí, pedi o apoio para a tarefa de retirar o material da tipografia e a colecção do AVANTE!, dali para fora.
Eram três horas da madrugada. Separámo-nos, um de cada vez e cada qual por seu caminho. Eu caía de sono, fome e cansaço. Ainda deu para comer um pedaço de pão com café (leite não entrava em casa de operários) antes de ir para a cama, no quarto que partilhava com o meu irmão que, meio a dormir, viu as horas e refilou: “de onde é que este sacana vem a umas horas destas?”. Ainda resmungou mais qualquer coisa, mas já não o ouvi.
Dormi como um calhau e às oito horas da manhã estava no trabalho, a fingir que não tinha acontecido nada por aí além. Ter faltado ao trabalho, no dia anterior, “foi uma dor de barriga que me deu em caganeira, que estava a ver que morria com tanta escagarrinha”.
Os dias seguintes foram de sobressalto. Cada pessoa que me encarasse ou caminhasse na minha direcção, logo me parecia que podia ser um pide. Com o correr dos dias a tensão foi-se dissipando, até porque não ocorria nada por ali à volta. Para nossa surpresa, e felizmente, nem o senhorio, nem a vizinhança, incluindo a Ilda, badalaram o desaparecimento dos inquilinos da Casa, nem a polícia pareceu ter tomado conta da ocorrência.
Mas um certo dia, meados de Novembro, desse ano de 1945, apareceu-me, na Escola Industrial, que eu frequentava à noite, o meu pai e camarada, a dizer-me que, acabadas as aulas, seguisse logo para casa, que “havia festa para essa noite”.
Era altura de recolher os materiais que estavam à minha guarda.
A casa onde eu vivia com os meus pais, os meus cinco irmãos, a minha avó e o meu primo era, ainda é, rente à Mata de Marrazes. Cheguei cerca das onze horas, já me esperavam os mesmos dois camaradas, mais um terceiro. Trocámos as credenciais:
- Já não era preciso mas, mesmo assim…
Nem me deram uns minutos para jantar, “outra rafa de fome em perspectiva”. Incumbiram-me de ver se o caminho estava livre até um quilómetro, para cada lado da estrada. Nada de anormal, ninguém na rua, sossego absoluto. Regressei ao ponto de partida a dar a informação.
- Óptimo, vamos a andar com isto.
Pus o material a descoberto, eu é que sabia dele. Estava emparedado numa antiga mina para captação de água, e esse trabalho levou algum tempo. Quando tudo estava pronto para avançar voltei de novo à estrada para fazer de batedor, para o carregamento se efectuar em segurança.
Do lado direito da Estrada da Mata havia, então, um caminho, que ligava aos lugares de Chãs e Outeiros. Ao aproximar-me desse local, na minha função de batedor, vi vultos no escuro (não havia iluminação e era pinhal de um lado e de outro), que me pareceram GNR's, a entrar pelo dito caminho dos Outeiros, em perseguição de passos que se ouviam. Um dos guardas bradava:
- Alto! Ou faço fogo.
E o outro avisava:
- Pois, fogo com os gajos, enfiados pelo pinhal dentro.
Não era nada comigo, mas mesmo assim apanhei um valente cagaço. Voltei para trás, a dar conta da ocorrência, mas era tarde. Os camaradas, com o material às costas, já estavam na rua e entretanto havia indícios da aproximação de alguém. Foi só o tempo de se esconderem, com a carga, num tufo de acácias que havia ali perto, no sítio onde foi construído o Edifício-Sede do Sport Club Leiria e Marrazes. Logo se aproxima de mim, que fiquei parado no meio da estrada, um homem com uma bicicleta à mão para me perguntar se tinha sido entregue a mercadoria. Isto está a ficar complicado, eu é que tenho mercadoria para entregar, e agora aparece-me este...
- Boa noite - gaguejei - diga lá, não estou a perceber, qual mercadoria?
Ficou à rasca, também ele a gaguejar.
- Você não é, ou vem da parte do Zé... Não é empregado, ou coisa assim?
- Até posso ser, mas não apareceu ninguém com coisa nenhuma e não me explicaram o que seria, só que era coisa séria, mas pelos vistos a coisa não tem nome.
- É azeite! Três gajos de bicicleta, com três odres dele! Não me diga que não os viu?
- Vi, a correr, à frente da Guarda, pelo pinhal a dentro.
- Estou fodido.
- Não está nada. Pelo que julgo ter visto, e pelo que ouvi, ninguém levava bicicleta nenhuma e os guardas, com os “canhangulos” às costas, nunca mais lhes põem a mão em cima.
- Se calhar deixaram-nas por aí algures. Vou dar uma vista de olhos. Mas por onde? Com o escuro que se faz...
- Pois vá e desapareça, não o quero ver tão depressa, ouviu bem? E se corre para o torto... já sabe.
- Esteja descansado, tomara eu desenredar-me desta.
O candongueiro montou na bicicleta e desapareceu. Voltei a descer a ladeira. Uns metros atrás, seguiam os camaradas, com as suas preciosíssimas cargas. Se houvesse azar eu acenderia um cigarro com dois fósforos (era o combinado), e seguia o meu caminho, como se não fosse nada comigo. Eles haviam de se desenrascar. Não acendi nenhum cigarro, e quando tive a certeza que a missão estava cumprida, saí da estrada e regressei a casa, por caminhos travessos.