Intervenção de Abertura do Seminário "Em defesa da Floresta e do Mundo Rural"

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João Frazão, membro da Comissão Política do Comité Central do PCP

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Camarada e amigos,

Na abertura deste seminário sobre a defesa da floresta e  do mundo rural, duas explicações haverá a fazer.

A primeira para afirmar que ele estava previsto já há alguns meses para abordar os aspectos da política florestal, fazer o ponto de situação das acções subsequentes aos trágicos acontecimentos de 2017 e apontar caminhos e propostas do PCP para o sector.

Não viemos portanto atrás das modas ou de reptos com que alguns pretendem alimentar o populismo que tem pasto para crescer nas imagens ainda presentes do inferno vivido há tão poucos meses por muitos milhares de cidadãos.

Tão pouco viemos atrás das notícias que dão conta do desnorte e da barafunda que no terreno está instalada, ainda que o Ministro da Agricultura, depois de ter comparado o conjunto de leis aprovadas à pressa na Assembleia da República à reforma florestal de D. Dinis, venha agora dizer que se está a preceder à maior limpeza dos últimos 900 anos. Exageros que não resolvem nada, nem aligeiram os problemas que se acumulam.

No seguimento dos incêndios que assolaram, em Junho de 2017, Pedrogão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, o PCP, face à fúria legislativa que tomou conta do Governo, sob o patrocínio do Presidente da República, teve ocasião de lembrar que a pressa quase sempre é inimiga da perfeição. Poucos meses passados, a vida aí está para provar o real alcance das medidas então decididas.

Como se aplica o novo Regime Jurídico da Arborização e Rearborização, que apesar de ter acolhido algumas das propostas que PCP e PEV, tendo sido substancialmente melhorado, apenas entrou em vigor em 1 de janeiro deste ano, e mesmo assim, sem que se perceba quais as alterações no concreto para quem quer fazer plantações de árvores? O ICNF está já a fazer a fiscalização aleatória dos projectos que apenas reclamam informação prévia? Como está a aplicar a fórmula de redução da área de eucalipto?

Como se explica que a lei do Sistema de defesa da Floresta contra incêndios tenha sido quase de imediato contraditada por decretos lei e portarias e despachos avulso, sem que tenha sido cumprida na sua globalidade. Quando será anunciado o Coordenador e o Orçamento autónomo previsto na Lei?

Que articulação existe entre as decisões tomadas em Junho e as entidades criadas nos meses subsequentes?

Como entender que na Directiva Única de Combate aos Incêndios, não esteja reservada uma linha sequer para o corpo de Guardas Florestais cuja reconstituição foi decidida em Junho e, a fazer fé nas palavras do Primeiro Ministro, está já a concurso o reforço de agentes?

E como explicar que tantos meses depois, continuem por aprovar os PROFs, apenas agora em consulta pública e continuemos sem conhecer o Inventário Florestal Nacional, instrumento essencial para as medidas de contenção da área de Eucalipto previstas no RJAAR??

Que consequências terá o facto de apenas 7 mil prédios estarem, até este momento cadastrados, mesmo que existam 50000 agendamentos, nos 10 concelhos da experiência de cadastro simplificado, o que pode indiciar que, das 700 mil parcelas existentes, mais de meio milhão ficarão, a este ritmo, por cadastrar até ao final do ano, altura em que deverá ser feita a avaliação para a a sua generalização a todo o território nacional?

Como na altura afirmámos, o que era preciso não eram mais leis, nem mais relatórios. A origem dos problemas estava toda identificada nos sucessivos relatórios aprovados por larga maioria na Assembleia da República, em 2005, 2009 e 2013.

Ela residia em décadas de política de direita e de penetração da PAC em Portugal, que condenou o mundo rural ao desordenamento e ao abandono.

E o que fazia falta, também o dissemos, era a aplicação da abundante legislação consolidada, da Lei de Bases da Politica Florestal à Estratégia Florestal Nacional, da realização do Cadastro à Lei da Defesa da Floresta contra Incêndios, que agora o Governo, para justificar a perseguição aos pequenos proprietários, vem confirmar que já existia desde 2006.

Chega até a ser intrigante ouvir alguns dos protagonistas dessa opção de desprezo pla floresta portuguesa, que agora fingem nada ter a ver com o assunto, como, para ficarmos só pelos ministros, Álvaro Barreto, Arlindo Cunha, Capoulas Santos, Jaime Silva, Assunção Cristas. Pior, há os que agora participam de um dito Movimento pelo Interior, como Arlindo Cunha, Jorge Coelho, Álvaro Amaro, Silva Peneda, Miguel Cadilhe e outros, que até se reclamam, como Arlindo Cunha calcule-se, de defensores da regionalização, todos eles agora com as soluções milagrosas para o interior e o mundo rural.

Insiste-se, a seguir aos incêndios de Pedrógão Grande, o PCP uma vez mais preveniu que o que fazia falta eram meios humanos, técnicos e financeiros para dar resposta aos inúmeros problemas da floresta e uma outra política de valorização do mundo mundo rural e de incremento do desenvolvimento regional.

Na sequência dos incêndios de 15 e 16 de Outubro, que como aqui bem se sabe, teve como um dos mais conhecidos impactos, a destruição da maior parte do Pinhal de Leiria, tendo ficado visível que a proposta do Orçamento do Estado, entregue na Assembleia da República no dia anterior, não continha, uma vez mais, as respostas necessárias a um drama de tal dimensão, e à defesa da floresta e do mundo rural, foi posta em andamento uma operação de propaganda e desresponsabilização que ainda hoje perdura.

Propaganda espelhada na sucessão de anúncios, seja por parte do primeiro Ministro, seja por parte do ministro da agricultura, de milhões e mais milhões, de que a expressão de Capoulas Santos de que nunca nenhum outro Governo tinha feito um esforço tão grande no apoio às vítimas, dá bem a dimensão, uma vez que nunca antes tinha havido tragédias com esta dimensão humana, material e patrimonial.

Repare-se que apenas o primeiro ministro, nos dois últimos debates quinzenais na AR, anunciou no primeiro, um apoio de 15 milhões de euros para limpar as matas, e, sem que perceba o que é que lhe aconteceu, anunciou no segundo debate uma linha de crédito de 40 milhões. Em que ficamos?

Propaganda assente numa intensa trapalhada jurídica e de comunicação, tão evidente no Decreto Lei 10/2018, uma autêntica aberração técnica, que o PCP quer revogar, ou na famosa comunicação da Autoridade Tributária, que sustentou uma autêntica perseguição aos pequenos proprietários e que continha um folheto que, de tão mal feito, já nem o próprio ICNF usa no seu sítio na Internet.

Propaganda que, pretendendo garantir que, quando o fogo tomar de novo conta de matos e florestas, o Governo possa sacudir a água do seu capote e apontar responsabilidades a outros, contribui para a sua desresponsabilização e para um passa culpas para as autarquias e a pequena propriedade.

Não podemos deixar de denunciar a ofensiva para culpabilizar os pequenos e médios produtores florestais, de que a teoria das terras abandonadas é apenas a parte mais visível. Para alijar responsabilidades por anos e anos, não apenas de abandono, mas de activo desprezo e destruição, a partir das opções da política de direita, os poderes instituídos lançaram o anátema sobre os que não cuidam da floresta, os pequenos produtores, chegando ao ponto de, na proposta de lei do Governo PS de criação da Bolsa de Terras, se admitir o confisco puro e simples das terras ditas sem dono conhecido, intenção apenas travada pela firme oposição, no plano social, por diversos sectores e, no plano político, pelo PCP.

Confisco que, sublinhe-se, não serviria para políticas públicas activas de defesa da floresta, mas antes para entregar aos interesses privados que em torno dela se movimentam.

Talvez exista quem pense em impor uma floresta e um mundo rural desenhados a régua e esquadro, a partir de gabinetes com ar condicionado e modelos matemáticos e estatísticos infalíveis.

Mas, mesmo reconhecendo a necessidade de mudanças estruturais, que podem implicar algumas rupturas com dinâmicas instaladas, não será possível (re)construir a floresta portuguesa e o mundo rural, sem ter em conta e envolver os pequenos agricultores e produtores florestais, os “rurais” concretos que aí vivem e trabalham.

Tenha-se em conta a média etária dos agricultores e produtores portugueses. Tenha-se presente o conjunto dos que, não tendo a agricultura como actividade principal, dela fazem um importante complemento de rendimentos e com ela contrariam a desertificação e o abandono.

Assumam-se como essenciais os “naturais” que não vivendo a todo o tempo nas aldeias de origem, aí mantém a sua pequena exploração, aí habitam e dão vida às aldeias uma parte do ano.

Camaradas e amigos,

Pontapé de saída apenas para o nosso debate, esta minha intervenção não pode deixar de sinalizar três das áreas onde a política de direita socavou mais na possibilidade de defesa da floresta.

Em primeiro lugar, o desmantelamento do Ministério da Agricultura, com a redução de milhares de trabalhadores, com o encerramento de serviços de extensões rurais, com as zonas agrárias abertas, com sorte, uma ou duas manhãs por semana.

Desmantelamento que teve particulares impactos no ICNF, gigante com pés de barro, criado à custa da fusão da Direcção Geral das Florestas e do ICN, mas que não responde nem a umas nem a outras necessidades.

Em segundo lugar a desvalorização do preço da madeira, não apenas das madeiras nobres, hoje quantas vezes vendidas a preço de lenha para queimar, mas já no eucalipto e no pinheiro, com preços à entrada na fábrica, abaixo do praticado há dez anos atrás.

Pressão que se entende num quadro de quase monopólio por parte da Altri e da Portucel, no caso da Celulose, e da Sonae, no caso dos aglomerados de madeira. Continuam por esclarecer como é que, durante anos, as empresas de celulose tenham comprado madeira no estrangeiro ao dobro do preço do que pagam no país.

Em terceiro lugar a política de desertificação, duplamente penalizadora destas regiões, pois não apenas emigram os que tratavam das terras e permitiam os mosaicos agrícolas e florestais que poderiam conter os incêndios, como emigraram uma boa parte dos que se dedicavam ao voluntariado nos Corpos de Bombeiros, deixando à dinâmica do fogo, o desenrolar dos acontecimentos.

Camaradas e amigos,

A completa ausência de referência aos Baldios em dez diplomas sobre a floresta, apresentados pelo Governo no Pacote das florestas suscitaram-nos, na altura, legítimas preocupações. Importa registar que os Baldios, representam cerca de meio milhão de hectares de floresta nacional, 10% do total, ocupando, particularmente no Norte e Centro do País, uma importante faixa do território, onde é, ou será executada uma boa parte da rede primária da defesa da floresta. Os Baldios são um tipo de propriedade, a comunitária, que se encontra consagrada na Constituição da República Portuguesa e que, não obstante a notável obra realizada, só não deu um maior contributo para o desenvolvimento da floresta e a prevenção e combate dos incêndios florestais, pelos ataques que sucessivos Governos lhes moveram!

Por fim, uma palavra para as vítimas dos incêndios de 2017. Milhares de homens e mulheres que, contra tudo e contra todos, insistiam em manter a sua horta, o seu pinhal, a sua casa. Em povoar e assegurar a produção agrícola e pecuária. Em receber o turismo e fazer boa cara à falta de serviços públicos, em fazer esticar as migalhas dos apoios públicos, quando os havia, para assegurar os investimentos que faziam falta.

Estes, na sua maioria pequenos e médios proprietários e produtores florestais, são as vítimas dos défices estruturais provocados pela política de direita, não são os culpados. A este respeito duas palavras ainda.

A primeira para referir que o PCP não desistiu de assegurar a todos os cidadãos atingidos pelos incêndios de 2017, os apoios extraordinários a que têm direito.

Sabemos dos muitos casos de pessoas que, pelas mais diversas razões, não conseguiram candidatar-se ou, tendo-se candidatado aos apoios simplificados vêem agora cortados os apoios com que contavam. Casos de pessoas que fizeram a declaração de prejuízos e pensaram que tinham tudo tratado. Pessoas que residindo longe das suas terras, alguns mesmo no estrangeiro, não foram capazes de aferir dos prejuízos. Candidaturas preenchidas pelos serviços das Zonas Agrárias ou outros serviços públicos incluindo parcelas que agora foram cortadas. Há de tudo.

Não pode o Governo enterrar a cabeça na areia. É preciso acalmar esta ferida que está ainda em sangue.

Até porque nós sabemos, e o Governo também sabe, que dos cerca de 24 mil agricultores que se candidataram aos apoios simplificados até 5000€, a esmagadora maioria teve prejuízos substancialmente superiores. Duas ou três vezes maiores em muitos casos. Mas não tiveram forças, não conseguiram fazer processos de candidatura ao PDR 2020, que exigem processos burocráticos muito exigentes e prazos de candidatura e decisão muito prolongados.

O Ministro da Agricultura manifestava, na Comissão de Agricultura, uma grande incompreensão, indignação mesmo com esta situação. Então as pessoas não queriam apresentar três orçamentos para cada custo e um projecto que ainda por cima era elegível nos custos. Ao colocar esta questão, o Ministro não apenas confirma a sua visão distorcida de uma realidade que é muito, mas infinitamente mais rica, mais variada, mais complexa que a agricultura intensiva do capitalismo agrário da grande propriedade, como revela que não percebeu os impactos que o drama dos incêndios provocou nestas populações, no mais dos casos envelhecidas e fragilizadas.

Camaradas, amigos,

para a defesa da agricultura familiar, da floresta, da silvicultura e da pecuária, importa olhar para o mundo rural como um todo. Não vale a pena fazer apelos para a fixação das populações no mundo rural, se aí não se encontrarem os empregos capazes de lhes garantir o sustento. Não se espere que os jovens constituam família, em localidades onde não há médico, onde não há respostas para a infância, onde não há escolas.

Não se pense que é atractivo o local apenas belo, com paisagens deslumbrantes, com belos ribeiros e árvores altas, mas despojado dos serviços públicos essenciais, dos correios aos transportes, das finanças aos balcões bancários. E não se assuma que os investimentos aparecem do nada, da iniciativa privada, sem a alavanca dos investimentos públicos necessários, em infraestruturas e acessibilidades.

E, particularmente, não se exija ao pequeno agricultor ou produtor florestal ou pecuário, que produza, e que produza o que mais interessa à comunidade, sem garantia de obtenção do justo rendimento pelo seu trabalho.

Como afirmámos no momento da discussão pública do pacote Florestal, sublinhamos de novo que, no caminho da ruptura necessária com a política de direita de quatro décadas, as medidas para valorizar a floresta têm de se centrar no rendimentos dos produtores; na defesa dos Baldios e do seu uso e gestão pelos povos, com os apoios necessários; na elaboração do Cadastro Florestal investindo os meios necessários para tal tarefa; na atribuição de mais meios públicos – humanos, técnicos, financeiros e materiais – às estruturas do Estado que intervêm na floresta; na inversão da diminuição do peso relativo do sobreiro e do pinheiro e de espécies autóctones, face ao eucalipto.

Só assim se assegurará, no quadro de uma política patriótica e de esquerda, o objectivo de garantir o aproveitamento e preservação dos recursos hídricos e agroflorestais do solo e áreas de uso agrícola e o ordenamento florestal que privilegie o uso múltiplo, as economias locais e a função ambiental da floresta.

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